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26 de novembro de 2007

Alguém escreve ao coronel ?
Uma outra forma de perceber a história recente do Brasil

Alexandre Campinas, Anne Lages e Carolina Ávila


É necessário chegar na hora marcada. Afinal, ninguém desconhece o caxiismo militar. Em todos os sentidos: Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, o Pacificador – há contestação histórica, que joga a alcunha na conta de uma mitificação interessada –, como se aprende nas aulas de história do Brasil, é o patrono do exército e paradigma nacional do comportamento certinho, impoluto. Sobre o caxiismo, disse o sociólogo Gilberto Freyre: “não é o conjunto de virtudes apenas militares, mas de virtudes cívicas, comuns a militares e civis”, portanto a pontualidade está incluída.

Na subida da engarrafada Avenida Raja Gabaglia, em Belo Horizonte, a caminho da casa do coronel, olhamos para o relógio. Faltam cinco minutos para a hora marcada. A solução imediata é telefonar, avisando sobre a possibilidade de um pequeno atraso. Ponto para a empatia. Rigorosamente pontuais, tocamos a campainha em cima das 13.30h. Bela casa. Dois andares, mangueira carregada no jardim. Na garagem, dois carros rigorosamente iguais dão a noção de que encontraremos personagens sistemáticos pela frente. Dona Graça, a esposa, jus ao nome, recebe-nos com hospitaleira simpatia. O coronel desce as escadas e convida-nos a subir com ele para o escritório. É Carlos Cláudio Miguez, descendente de imigrante espanhol, homem na faixa dos setenta anos, pele muito clara e face rosada.

Carlos Cláudio Miguez em seu QG

(Foto: Anne Lages)


Flamengo, livros e ideologia

No escritório, a estante repleta de livros com temática única (reacionária como diriam os que não acreditam na possibilidade de convivência política das diferenças ideológicas – e, a bem da verdade, também Carlos Miguez alimenta essa polarização) indica com clareza o pensamento do dono da casa: liberal de direita, na linha preconizada pelo falecido economista Roberto Campos. O ambiente é completado com antigas fotos dos tempos da caserna, medalhas e uma bandeira do Flamengo, clube de coração do militar. “Meu pai levava-me para o campo da Gávea para assistir os jogos. A bandeira, velhinha, que guardo com carinho, é daquele tempo”, entusiasma-se com suas recordações de Biguá, Pavão, Dequinha, Bigode e outros craques rubro-negros.

Flamengo - 1948

Aos poucos, o menino criado no imenso areal transformado na Copacabana dos anos 40 e educado entre os classemedianos colégios Marista e Militar, ambos na Tijuca, Rio de Janeiro, revela a construção do homem e a formação de uma ideologia. Em tempos de pluralidade política e diversidade de opiniões, o coronel Miguez parece uma exceção, isolada em um passado autoritário recente. Nem tanta exceção e muito menos isolamento. Escrevem, sim, ao coronel e o coronel também escreve. Muito. Faz parte de um grupo de militares – exército, principalmente – e civis que dedica-se a uma causa: afastar os perigos do comunismo do Brasil. Para isso, oficiais da ativa e reserva, jornalistas, filósofos, artistas e sociólogos, colaboram para o jornal do Grupo Inconfidência, editado por Carlos Miguez, que também edita livros.

“Põe aí na sua matéria: o Sirkis estava certo quando escreveu em seu livro, Os Carbonários, que nós vencemos a guerra contra o comunismo, mas eles venceram a batalha da mídia”, reclama o coronel dizendo que jornais, tv's, rádio, revistas e internet estão tomados por um pensamento que, sub-repticiamente, constrói a ideologia socialista, nos moldes propostos pelo pensador Gramsci. “Vocês, jornalistas têm o dever de contar a verdade, sem partidarismos. Hoje tudo está tomado por eles (os socialistas), até nas escolas: os livros didáticos cometem grandes atrocidades. Denigrem a imagem de Caxias, realçam o ditador paraguaio Solano Lopez, exaltam as ditaduras comunistas de Cuba, China, Nicarágua... Os livros de história adotados e distribuídos pelo MEC são a porno-marxização da educação”, polemiza Miguez.

1964

Quando o assunto é o golpe militar de 1964, o coronel procura esclarecer o seu ponto de vista. Segundo afirma Miguez, não houve golpe, muito menos de urdidura militar. A visão do coronel é a de que desde a renúncia de Jânio Quadros (“um louco”), em 61, o país vivia sem mando, aberto a qualquer tentativa de expansão do comunismo em terras brasileiras. João Goulart, o vice-presidente de Jânio Quadros, assumiu um governo parlamentarista por força de uma conjuntura que impôs aquela forma de regime como a única viável para que ele ocupasse a presidência (Tancredo Neves foi o primeiro-ministro) e que, logo depois, voltou à estrutura presidencialista por exigência de um plebiscito. Carlos Miguez afirma que João Goulart (Jango) não tinha condições para estar a frente de um governo. “Era um estancieiro bonachão, um banana nas mãos do cunhado Leonel Brizola e sua turma. As raposas iriam transformar isso aqui numa ditadura comunista” diz Miguez, destacando que a sociedade civil e o empresariado já não agüentavam tantas greves, tanta confusão e a situação econômica deteriorada. Por isso as forças armadas intervieram.

Uma opinião

Veja outra opinião

Coronel Miguez: "Jornalistas devem contar a verdade..."

(Foto: Anne Lages)

“Era uma situação complicada, perigosa. A classe média não suportavam mais e pediu aos militares a intervenção. Houve as enormes passeatas pelo Brasil afora. Eram as Marchas com Deus Pela Família e Pela Liberdade. Não houve golpe, e sim um movimento contra-revolucionário contra os comunistas e baderneiros. Tanto que a sociedade apelidou o movimento de A Redentora. Das janelas das casas, as famílias saudavam a contra-revolução, o que prova o que afirmo”, entusiasma-se Miguez.

Segundo o coronel, o governo da Junta Militar e o do general Castelo Branco estavam preparados para sanear e devolver o país em condições para as eleições de 65, mas começaram as disputas políticas pela presidência. Carlos Lacerda, governador da Guanabara (que apoiou 64) e Juscelino Kubistchek acabaram com os direitos políticos cassados, junto com várias outras pessoas. A partir daí, ainda segundo Carlos Miguez, o que se seguiu foi uma tentativa de badernização do Brasil. Estudantes, operários, militantes, políticos tentaram tumultuar o clima democrático reinante o que, ao longo do tempo, resultou no Ato Institucional nº 5, o AI-5, em dezembro de 1968, radicalmente restritivo. “Era a forma de combater os subversivos, terroristas que matavam militares, policiais e gente comum em atos de guerra”, justifica o coronel.

Anos de chumbo

Quando a entrevista encaminha-se para os anos mais duros do regime militar, o coronel Miguez é taxativo: “Houve uma guerra. Tudo o que fizemos foi necessário, imperioso para aquele momento. Os terroristas com seus assaltos, seqüestros e ações iriam acabar com o país, com a paz, com o enorme desenvolvimento econômico do Brasil”. Pausa para um sorriso de Carlos Miguez. É a neta que traz, graciosamente, um cafezinho. Arrumamos a bandeja desajeitadamente e o coronel sugere que uma colega jornalista sirva o açúcar, afinal, diz Miguez, “elas têm muito mais jeito para essas coisas”.

Nosso entrevistado aproveita a pausa para mostrar edições passadas do jornal Inconfidência. “Olhem aí o artigo do Ustra (cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra) ! Ele não tem como se defender daquela moça que o acusou de torturador. Só aqui no jornal. A imprensa está toda tomada. Foi tudo mentira daquela atriz... A verdade está toda aí”, reclama o coronel. O caso é o da atriz Bete Mendes que, participante de uma comitiva do governo brasileiro – na época do presidente José Sarney – em visita ao Uruguai, denunciou o então adido militar naquele país, o cel. Ustra, como o homem que, pessoalmente, a torturou. “Houve alguma coisa disso, de torturas e coisa e tal. Tenho que relembrar: era uma guerra e o país estava em risco; mas tem muito exagero nisso tudo. Tem a guerrilha do Caparaó, a guerrilha do Araguaia. Numa guerra mata-se e morre. Agora querem inventar o bolsa-terrorismo. Premiar os inimigos do Brasil. Os terroristas entram com uma ação na justiça e passam a receber mesadas vitalícias, além de indenizações milionárias”, revolta-se.

Aproveitamos o gancho. E Lamarca ? O coronel Miguez não morde a isca da provocação. Jornalistas... Comenta genericamente o absurdo da premiação póstuma, reclama dos valores pagos à viúva, filhos e à antiga companheira do capitão do exército, que um dia entrou para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) levando consigo armas do quartel no qual servia, em São Paulo. Um desertor, segundo nosso personagem. “Olhem aí no jornal. Está tudo escrito aí”, tenta escapar por uma tangente. Insistimos. E a possibilidade de uma promoção póstuma a general ? “Ele nem chegou a coronel. Isso foi coisa política, para aumentar a tal indenização... agora vêm com essa história de general... revanchismo. Coisa do Tarso Genro”, encerra a questão aproveitando sua própria menção a um quadro do PT para comentar o nível de corrupção e desmandos do atual governo. “Aquele moço, o Bruno Maranhão, que comandou a invasão do Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST), ao senado é da direção do partido... Um absurdo. E ainda por cima, as estatais são cabides de emprego para os militantes petistas”, revolta-se.

Carlos Lamarca


O liberalismo do coronel também é radical. Tão radical que ele considera os falecidos generais Golbery (do Couto e Silva, orquestrador do projeto de abertura política – lenta , segura e gradual – a partir de 1974) e Geisel (Ernesto Geisel, presidente do país entre 1974 e 1978) como estatizantes, responsáveis pelo fim do desenvolvimento econômico obtido até então (o Milagre Econômico teve vez no início da década de 70, baseado no desenvolvimento industrial brasileiro graças à grande oferta de combustível barato e crédito praticamente infinito. Terminou com a Crise do Petróleo e uma enorme dívida externa que acabaram pondo fim na era desenvolvimentista). Ele prega a privatização para que os empresários retomem o crescimento brasileiro.

O Feiticeiro (Golbery) e o Sacerdote (Geisel): estatizantes demais


Democracia



Pode ser que muitos discordem de Carlos Cláudio Miguez; afinal, atualmente, cada um escolhe sua ideologia e a pratica livremente. Entretanto deve-se compreender a postura corporativa do coronel como a de um homem ligado fielmente à ordem das Forças Armadas. Instituição que necessita de uma razoável unidade de pensamento e alta hierarquização para atingir os objetivos de defesa do país contra os inimigos externos. Também pode-se entender o coronel pela maior ligação de sua arma, o exército, com os problemas vividos nas décadas de 60, 70 e 80. Eram os seus camaradas que estavam a frente dos eventuais combates, perdendo fileiras e lutando por um ideal. Assim como também ocorre com o outro lado da mesma história. Outros militares consultados garantem que os radicais não são maioria nas corporações, porém as histórias e as feridas dos anos de governo militar ainda circulam vivas na caserna.

É plenamente garantido ao coronel Miguez, aos seus companheiros do Grupo Inconfidência, aos participantes do Grupo Ternuma (Terrorismo Nunca Mais), entre outros, o direito à defesa de suas convicções e de seus ideais. Assim como também deve acontecer com os pensam de forma diferente. São as vantagens da democracia política. Despedimo-nos de Carlos aproveitando uma carona Avenida Raja Gabaglia abaixo. Ao deixar-nos próximo à uma agência dos Correios, onde iria tratar da postagem do jornal Inconfidência, o coronel Miguez fez um pedido: “Podem por isso na sua matéria: a situação, hoje, está pior do que em 64. Podem por isso aí !” É o velho coronel que, ao contrário do personagem de Garcia Marquez, está forte, vigoroso e acompanhado em seus 70 anos.

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