Comunidade radioativa
Uma história de resistência cultural comunitária
Periferia ativa: Taquaril FM (foto AC)
Antes mesmo de entrar no pequenino estúdio, passa-se por uma espécie de sala, ou corredor, onde estão empilhadas cadeiras, mesas, objetos diversos e uma cadeira de rodas sanitária, evidente sinal de como funciona, e bem, o serviço de utilidade pública da rádio. "Era uma necessidade nossa ter uma fonte de divulgação da cultura dos grupos locais. Ninguém iria divulgar o nosso trabalho. A gente não pode aceitar só o que vem de fora. Também produzimos cultura. Temos aqui grupos culturais diversos. É capoeira, é rap, é funk, é samba e tudo mais. A rádio atende a todos os grupos sem discriminação" diz, com orgulho, W2.
Rap na Veia
O Rap na Veia vai ao ar de segunda a sábado, no horário de 16.00h as 17.30h. Durante a semana é W2 quem comanda a atração. Aos sábados, o irmão Nenéu assume. O programa divulga a produção local dos grupos de cultura Hip-hop. W2 conta a história do movimento surgido na Jamaica, há 40 anos. Segundo o radialista, o movimento era uma forma de união cultural e resistência. "Lá havia violência e, depois do Hip-hop, aquela violência caiu em 60%. Daí foi para os Estados Unidos, rapidamente adotado pelas comunidades de lá e com o mesmo efeito de diminuição da violência. Chegou no Brasil em 1985, em São Paulo, e, de lá pra cá, só faz crescer", explica W2. Ele afirma que o Hip-hop nada tem a ver com aculturação. "Muito pelo contrário. Cantamos música em português e a temática é totalmente nossa. Nossas vidas, nossos dissabores, nossa luta diária, a opressão da polícia...", conta o rapper que, no início do programa, era ameaçado de morte em ligações anônimas. "Fui até agredido mesmo. Aí eu abri o espaço para que eles falassem. Quer falar ? É contra ? Quer ameaçar ? Vem cá. O microfone tá aberto, é só reclamar. Tudo é democrático aqui.", esclarece W2 que, depois, passou a incentivar a valorização da comunidade através da denúncia de ações de abuso de poder.
Segundo W2, após essa campanha as pessoas começaram a ligar e denunciar os abusos para a corregedoria (da PM). A situação mudou. "Mudou. Mudou a relação. Passaram a respeitar a comunidade. E proteger, como é mesmo a função deles. É isso o que a rádio faz: cria identificação, a comunidade se abraça numa teia de proteção, se faz forte e se valoriza. Valoriza as pessoas, valoriza a cultura. A partir do Hip-hop, das letras dos raps, da arte dos grafites, da dança dos BBoys e dos DJ`s, a comunidade descobre o samba, descobre as folias, a beleza do canto das lavadeiras", enfatiza W2. E, tudo isso, segundo o rapper, com a linguagem local.
Legitimidade política
W2 afirma que a partir da rádio (e do rap) as pessoas passaram a querer mais, a exigir mais, entender melhor os seus direitos. "Antes a gente esculachava geral nas letras, até que descobrimos que só reclamar não adianta. Fizemos uma autocrítica. Assim, nos tornamos mais políticos. As letras, hoje, mais propõem do que reclamam, são nossas soluções, é a nossa voz verdadeira que sai em cada casa. Até os mais velhos que ligam para participar do programa entendem o que falamos, nossa gíria, nossos códigos. Eles sabem que no fundo, falamos de todos, e para todos. Uns até reclamam que falo demais e que poderia ter mais música no programa. Mas é o nosso momento de questionar. O rap te leva a pensar. Você não assiste a música: você vive a música. Conscientização pura, mano". A partir da resposta popular ao programa, houve uma união de movimentos culturais de toda a região. Essa união gerou a Aliança Cultural (várias tendências) e o projeto Arte no Morro que realiza eventos, geralmente no palco de cimento da praça Che Guevara, uma conquista comunitária.
É hora de W2 ir para casa. Trabalhou durante toda a manhã num bico de pedreiro, enquanto está desempregado. Apesar do cansaço, ainda sobra disposição para mostrar uma parte do terreno da casa, coberto de moitas de mamona. "Aqui será a biblioteca comunitária. A comunidade tem que ler, tem que conhecer. Vai funcionar aqui. Junto com a rádio. Nosso projeto não é cantar e ganhar dinheiro com a pornografia", alfineta W2, e continua "Tem estilo musical que se vendeu para a grande mídia. O rap não é assim, o movimento Hip-hop não é assim. A gente não é assim", mas logo avisa, para deixar claro que não há preconceitos: "A Taquaril FM tem até programa de funk, mas só funk bom. Nada de palavrões e coisas do tipo desvalorizar o sexo feminino. Isso não constrói nada", e assim encerra o seu discurso coerente na noite gelada do alto do bairro Taquaril.
No dial
- A Taquaril FM pode ser sintonizada nos bairros citados, região leste de Belo Horizonte, na freqüência de 102,7 mHz.
- No dia 10 de junho será realizado mais um Arte no Morro. Dessa vez, será um evento só de rap. As 17.00h, na praça Che Guevara, bairro Taquaril. As linhas de ônibus 9412 e 9803 fazem a ligação a partir de pontos no centro da cidade. Maiores informações pelo telefone da Taquaril FM: 3483-8803.