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29 de dezembro de 2011


A ficção imita a ficção

Por Alexandre Campinas em 03/04/2007 na edição 427 (Observatório da Imprensa)

"(...) A última frase do subchefe dava-lhe voltas na cabeça. O segredo da abelha não existe, mas nós conhecemo-lo, não existe, mas conhecemo-lo, conhecemo-lo, conhecemo-lo. Vira cair uma máscara e percebera que por trás dela estava outra exactamente igual, compreendia que as máscaras seguintes seriam fatalmente idênticas às que tivessem caído, é verdade que o segredo da abelha não existe, mas eles conhecem-no (...)" (A Caverna, José Saramago)

É possível interagir com o que já vem pronto, acabado, digerido ? A onda televisiva dos reality shows é a frutificação do processo alienante plantado no início da televisão. O telespectador senta-se em frente à TV para não existir durante o tempo que dura a atração. Durante aquele período ele aliena o seu direito – e dever – de pensar. Antagonizando, então, Descartes e seu cogito ergo sum, a "inteligentsia" finalmente conseguiu criar o "não penso, logo, inexisto".

A construção ficcional das novelas

A mass media empacotou a realidade e deu-lhe a forma de atração. O embotamento induzido pelo "excesso de nada" leva a um estado de disfunção narcotizante, constantemente alimentado pelo apelo ao individualismo contemporâneo que não consegue mais refletir, dentre outros aspectos, sobre a violência, as questões políticas e os problemas sociais. São momentos de vida não-comunicante, insocial, corroborados pelo hábito dos ipódis e emepês, pela falta absoluta da velha e boa conversa presencial e pelo ensimesmamento improdutivo. Ponto para quem apostou, na década de 40, no Deus-ferramenta (um deus de resultados) chamado televisão. Levou-se anos para criar o consumidor ideal e, agora, finalmente, voilà: ele não reclama, não sugere, não avalia, não critica e, ainda por cima, carrega a ilusão de interferir. É ou não é o Olimpo da alienação?

Como exemplo evidente, tomemos o mais famoso reality show: o Big Brother, impressionante atração em todos os países que o exibem. No Brasil, pelas mãos da experiente TV Globo, o formato da Endemol recebeu a herança da tarimbada construção ficcional utilizada nas telenovelas. Assim, percebe-se no BBB a existência de protagonistas, antagonistas e coadjuvantes, organizados em núcleos que interagem e se afunilam até o final. Eles desenvolvem uma narrativa que, a exemplo de qualquer outra, carrega seus conflitos, ápices e desenlaces. Personagens são coordenados por um narrador-onisciente que representa (indutivamente) o tal alienado do outro lado da tela. Sem deixar de mencionar a competentíssima sintaxe visual, representada pelos enquadramentos, marcações, cenografia etc.

Um demiurgo platônico

Afloram as características do livro 1984, de George Orwell, como, por exemplo, as impessoas (os eliminados), a novilíngua (linguagem simplificada e simplificadora que limita o pensamento crítico por inanição mental), o duplipensar e a eterna recriação da história de acordo com as circunstâncias propostas, entre outras similaridades (e, consequentemente, Vigiar e Punir de Foucault e O Panóptico de Bentham). No que diz respeito ao Big Brother (personagem) da literatura, este, por lógica, deveria ser interpretado pelo telespectador, o qual, entretanto, não exerce a função. Tem apenas a ilusão de exercê-la através da proposta interativa. Ora, a interação é fato impensável para o programa, exatamente por ser veiculado na televisão comercial, a quem não interessa que o telespectador "elimine", eventualmente, personagens importantes para a manutenção do interesse na trama. Caso a TV comercial agisse de outra forma, acolhendo a interatividade em detrimento da manutenção da audiência que estimula a negociação das cotas de patrocínio, ela seria a "TV burra" e, definitivamente, sabemos que não o é.

A TV segue construindo um produto desejado e, ao mesmo tempo, alimenta-se da demanda que o mesmo provoca; por outro lado, o telespectador também vive essa experiência baudrillardiana. Deseja viver (ou ter a impressão da vivência) aquilo que pensa que o reflete, deseja sentir-se partícipe. Vive imantado a uma ilusão extra-corpórea de existência projetada na tela da TV. Demiurgo platônico que mitifica não as individualidades, mas o projeto do conjunto delas, construído como uma fábula referencial que gera o efeito de real, com credibilidade e verossimilhança.

Daqui, de meu apartamento, eu não vejo as sombras na caverna, porém sinto o cheiro.